Com essas palavras, Chico César respondeu à pergunta de um jornalista que o entrevistava para o Jornal "O Povo", de Fortaleza, no início de novembro.
A entrevista completa pode ser lida clicando no link: O Povo
Mostrando mais um pouco do seu talento, Chico escreveu para a Revista Globo Rural desse mês, uma bela crônica:
IDADE DO GELO
Caçula, com apenas um irmão homem(15 anos mais velho que eu) e com cinco irmãs mulheres, cresci mimado por elas, minha mãe, a tia tia solteira que morou toda a vida conosco, umas outras tantas tias e as primas sem contar a madrinha de batismo e algumas de fogueira, as vizinhas. Do colo de uma pro colo de outra. Estavam sempre me dando banho, às vezes esfregando-me os calcanhares com caco de telha ou as costas com sabugo de milho. O que era motivo de chororô. Mas tinha de estar limpinho e cheiroso, o bichinho, elas diziam. E aí me penteavam os longos cabelos cacheados com trim e até punham grampos, que chamavam frisos, e armavam uma rodilha que cobriam com um lenço estampado.
Era muito riquefife em torno do neto mais novo, que podia até ficar mofino como o carneiro enjeitado seu amigo ou mesmo amulherado. Meu avô, João Boágua, pai de minha mãe, então me levava em suas incursões pela vazante, onde agora estávamos, para ouvir seus longos silêncios ou os curtos comentários ditos como se pensasse alto ou falasse sozinho sobre os nós das macaxeiras, a doença das batatas ou uma querência por terras no sítio Boágua que lhe deu o nome que eu não herdei. Sem que nem mais levantou a vista em direção à estrada e divisou uns jipes verde-oliva e outros, cor de cáqui, descendo devagar a ladeira. "Seu irmão", ele disse. "Estão trazendo Luís pra casa. Vamos, vamos. Corre, menino, que soltaram ele". Quede vô? Ali mesmo largou o enxadeco e saiu correndo. Eu atrás.
O homem de gestos lentos amadurecidos pelo artesanato dos anos parece que ganhou asa nas sandálias currulepe. Slep slep slep slep. Os torões e a maniva, a cancela, eu fecho? Slep, a areia do corredor coberto pelas canafístulas, o terreiro de mãe Cristina, slep slep slep, o cachorro de madrinha Toinha, sai prá lá gozo nojento, slep, espera vô, slep slep, corre menino mole que Luís voltou, o altinho esburacado e escorregadio, slep. A casa de Eva à direita, a casa da tia Vitalina à esquerda, alugada. Dobramos à esquerda esbaforidos.Os jipes já estavam parados na estrada de terra em frente à casa de dona Lulu.
"Ligeiro, menina, uma de vocês aí e vai avisar seu pai no roçado", ordenou minha mãe, depois de abraçar meu irmão e dispensar os conselhos dos meganhas sobre os perigos do comunismo. Aí foi só festa. E haja chegar gente. Meu pai chegou. E radiola, discos, bebida de adulto. E guaraná, grapete, fanta. Gelo em baldes grandes, que não tínhamos geladeira nem eletricidade. Chegam sanfoneiro, zabumbeiro, ritmistas. Gente que batucava nos tamboretes de couro. E haja tocar Trio Nordestino, Elino Julião, Noca do Acordeon, Luiz Gonzaga, Marinês, Paulo Sérgio, The Fivers. E toca a fazer comida pra gentarada toda. Povo da cidade e dos sítios vizinhos.
Foi a primeira vez que vi gelo. Peguei duas pedras. Uma em cada mão e fiquei zanzando em meio à balbúrdia dos adultos. Aquela era mesmo uma sensação nova pra mim, ardia e aliviava ao mesmo tempo. Era pedra e eu bebia. Era água e eu, firme, segurava entre os dedos. Era quente e frio. Vez em quando encontrava o olhar de meu avô, também um pouco à parte, sentado num cepo, ralando fumo num canto com um canivete lá só dele. Me fitava cúmplice. Tínhamos conseguido correr da vazante até em casa. E eu também era um Boágua, mesmo mirrado e sem o nome. Um Boágua, daqueles pretos orgulhosos, do lugar Jenipapeiro.
Globo Rural- Novembro 2006 - pág. 114
"...Foi a primeira vez que vi gelo. Peguei duas pedras..."
ResponderExcluirque coisa maravilhosa!!