Carlos Eduardo Bezerra
Ela pedia esmolas numa ponta de cruzamento. Ajudada por um menino, descia do ônibus que a trazia da periferia ao centro da cidade. Com dificuldades, sobre um carrinho de rolimã, atravessava a larga avenida para chegar ao seu posto de trabalho.
Entre baixar e levantar o braço para um ou outro carro, esperando que uma moeda, e raramente uma cédula, lhe caísse nas mãos, observava um fato inusitado. Que seria aquilo? Por alguns dias, manteve-se atenta aos acontecimentos, cuja repetição a intrigava. Estava tomada por um misto de curiosidade e indignação.
Às vezes, esquecia de estender o braço e uma moeda rolava pela avenida, perdendo-se no movimento intenso de carros ou sendo engolida pelo esgoto. Lamentou a perda da única cédula da semana, que saiu batendo asas, rápida feito um beija-flor.
Conseguiu entender o caso, que lhe tirava atenção e fazia com que deixasse de se defender dos carros. Arre, louco! Vai atropelar a tua mãe, maldito! Aprendera a defender-se com a língua. Estava sempre pronta a responder aos desaforos dos motoristas e pedestres mais arrogantes.
Descompunha, resmungava, desferia farpas, lançava pragas e, ressaltando uma das marcas do seu rosto, queimado pelo sol, dizia enfática: com mulher de bigode nem o diabo pode! Impunha-se da forma que lhe era possível: aos berros. Quando não era possível gritar, pensava: que uma carreta passe por cima de sua cabeça!
Mas o perigo não importava. Precisava compreender o fato e isso ela já o fizera. Estava certa do que via, era aquilo mesmo e ninguém a chamaria de louca. Pensou em chamar os meninos que vadiavam pelo largo só para confirmar o fato, mas se lembrou que eles podiam acabar estragando tudo.
Depois, pensou em chamar o menino que lhe ajudava, porém achou melhor que ele ficasse atento ao dinheiro, pois assim teria menos prejuízo. Mas quem eu chamaria? Pensou em chamar a polícia, no entanto considerava ainda cedo demais. Não podia atirar a esmo.
Passou a chamar os conhecidos que transitavam pelas calçadas. Todos os dias, cumprimentavam-na com um aceno de cabeça, com um adeus. Alguns davam-lhe água, bolachas, um cafezinho apesar do calor infernal. Outros ofereciam-lhe comida, geralmente restos do almoço ou da janta. Trouxe para você, é coisa boa. Prova! Agradecida!
Apesar da fome, desconfiando que aquilo não era coisa certa, colocava de lado dizendo sempre que ia esperar a fome aumentar. A mãe, que ela perdera ainda criança, costumava dizer que quando a fome é grande a comida é mais gostosa.
Quando a bondosa alma lhe virava as costas, ela oferecia a iguaria ao primeiro menino que aparecia por aquelas bandas, livrando-se de ter os seus trocados roubados. Menino, menino, toma pra tu, é comida boa que uma madame de carro me deu! Tão logo o menino saia pensava consigo: tolo! Ria-se. Livrei-me da comida e de ter o meu dinheiro roubado por este moleque. Deus é mais! Persignava-se.
No dia seguinte, chamou uma moça que, apressada, não lhe deu atenção. Tudo bem, depois vai querer saber e eu não te conto, maldita! Chamou um rapaz que só fez cara de e-eu-com-isso e foi pegar o ônibus. Chamou uma senhora e como resposta só escutou: Perdoe, minha filha, que hoje não tenho trocado nem pra missa.
Na verdade, a senhora toda de branco já estava atrasada para a missa das treze horas do dia 13 na igreja de Fátima. Conseguiu a atenção de uma outra mulher e relatou tudo o que vira até o momento. Você imagina isso?! Quer dizer que todos os dias... Todos os dias, minha filha! Todo santo dia ele vem e tome...
Chamou o mecânico que trabalhava no meio do quarteirão e ele trouxe também a turma da borracharia. Indignado, afirmou: duvido que faça isso comigo! Olha aqui o que eu tenho... Fez questão de mostrar a ferramenta... Todos, animados com o jeito acanalhado do mecânico, caíram na gargalhada.
Passaram-se mais alguns dias e todos os amigos do pedaço sabiam do fato. O comentário corria feito rastilho de pólvora. Não havia boteco, casa de morada, pensão, ponto comercial que não soubesse do que se passava no cruzamento. Mas nenhuma providência era tomada. E pensou: o que fazer?
Já sabia que uma madame observava tudo da janela do seu apartamento e que as empregadas dos prédios vizinhos não falavam em outra coisa. Talvez a madame telefonasse para a polícia denunciando.
Ela mesma, como costumava dizer voltando o dedo indicador para si e repetindo o nome inteiro, ela mesma, Maria das Dores, não podia fazer nada. As pernas secas, couro e ossos cruzados em eterna posição de lótus davam-lhe o aspecto de uma aranha, que se movia graças ao carro de rolimã.
De longe, Dasdô, como era mais conhecida no pedaço, parecia um monge budista eternamente entoando mantras. Pela aparência, apelidaram-na de mulher-aranha, que, por ironia da vida e maldade da humanidade, não escalava prédio, não saltava, não corria, sequer andava. Era bem diferente de Peter Parker.
Não sabia de fato o que fazer. Totalmente tomada de curiosidade e indignação estava perdendo dinheiro. Em casa, o pai e o irmão, ambos bêbados, que viviam do que ela trazia do cruzamento, estavam reclamando da queda dos lucros. Os lucros caiam e as reclamações e humilhações aumentavam em casa.
Dane-se! gritou. Vou é tomar conta do meu ponto, porque a barriga não fica vazia sem doer. Assim, resolveu ficar atenta ao trabalho e tomou o fato como o seu momento diário de diversão. Os incomodados que dessem o seu jeito. Quem quiser que se defenda, pois eu, euzinha aqui tenho que garantir o pão de cada dia. Cada um que se livre como puder.
Apenas guardava o caso consigo. E o fez de tal modo que depois de passado algum tempo já não se sabia ao certo o que ela via. Passou a misturar os fatos. Juntava pedaços de histórias numa confusão tremenda que fazia tudo parecer mais invenção de sua cabeça, que voava livre, bem diferente do corpo com as pernas sempre atadas como num eterno nó.
Com o passar do tempo, buscando contar o que acontecia aos que se interessavam por ela e pelo seu caso foi transformando tudo. Todos os dias aumentava ou diminuía o ocorrido, criava nomes, ressaltava detalhes e ninguém mais sabia ao certo do que ela estava falando. Mesmo assim achavam engraçado que aquela mulher, presa à sua condição de “super-herói”, fosse tão criativa e divertiam-se com isso.
De repente, ela parou de contar o que via no outro lado do cruzamento. Foi-se modificando. Era a mesma, mas era diferente. Era a mesma mulher-aranha, o mesmo monge budista sentado em posição de lótus entoando os seus mantras, mas agora parecia diferente.
Maria das Dores perdeu o sentimento de indignação ou alimentou-se tanto dele, que ele já não lhe aparecia no rosto, na fala rasgada de nordestina beradeira. Na maior parte do tempo, ela parecia uma estátua chinesa de porcelana: fria e comportada.
De fato, o que acontecia lá do outro lado do cruzamento ninguém sabia. Mas ela sabia. Ela sabia e guardava para si. E guardava como alguém que guarda o único presente recebido na vida. E isso servia para que soubessem que ela era alguém, pois quem tem um segredo ou recebe um presente é sempre importante. Só ela sabia o que ninguém sabia ao certo.
E num dia comum de trabalho apenas lamentou: será que ele não vem hoje, meu Deus?! E daí em diante ficou muda para sempre, apenas acenava com as mãos, um aceno educado de miss, de rainha. Acenava e segurava as moedas jogadas dos carros. A voz acabou-se na última frase: será que ele não vem hoje, meu Deus?!
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